Vinhos
Velharias (34)
Estava em casa com M, sem nada que fazer. Enfim, mais uma noite de ganza, igual a tantas outras. Resolvemos ir beber um copo ao Dixie.
Assim que entrámos, tive o desprazer de descobrir o bar invadido por um grupo de jovens felizes, armados com uma guitarra. Tão desinibidos se mostravam, cantando e tocando à vontade sem a mínima objecção do barman que, a princípio, pensei tratar-se de uma banda ali caída em noite de copos com os amigos.
Talvez! O certo é que não se calaram nas quase duas horas que lá permaneci. Devíamos ir a meio do segundo ou terceiro fino quando, talvez por coincidência, lá chegou o meu primo T, que também não tardou a mostrar-se perturbado pelos jovens vivos.
Felizmente, o andar de cima ficou vago pouco depois. Pudemos finalmente mudar-nos para um lugar de onde já não podíamos ver aquelas criaturas. Quanto a ouvi-las, a história era outra.
Impossível não pensar neles, foda-se. Putos novos, alegres, que vão beber ice-tea entre dois dedos de conversa e muitas cantorias ao bar dos pseudos, da cena gay "30-50", do underground politicamente correcto.
— Pá, de onde é que saíram estes gajos? — atirei para a mesa. — Pá, são o pessoal do grupo de jovens, respondeu T. — Grupo de jovens? — insisti — Como o INTERACT? Parecem mais indie kids à solta. — Que merda é essa?
Achei algo estranho que T não soubesse o que era o INTERACT, muito menos indie kids, mas também não havia de ser eu a perder tempo a explicar-lhe. — Pá, o INTERACT é um grupo de jovens.
M e T jamais se darão bem. Sair com os dois faz-me voltar aos tempos do liceu, onde tínhamos turmas divididas em grupos de amigos segundo a lógica das matilhas: os do meu grupo são meus amigos, os dos outros grupos, em princípio, não. E assim partilhamos uma mesa, em silêncio, porque dois dos meus bons amigos se detestam. Ambos me respondem, mas, entre eles, a conversa não flui. T acha M desprezível, M acha T um verdadeiro imbecil. E ambos têm razão.
Os jovens do grupo de jovens. Fascinante. Aproveitei o intervalo entre duas dentadas numa tosta para acender um Virginia fornecido por T. Reparei que me fitava enquanto acendia o cigarro. — Sim, sou um porco. A besta, a fumar e a comer.
M também comia, não respondeu. T notou que "aqueles lá de baixo" não comiam nem bebiam. Saíam para estar juntos, ao invés de se consumirem em grupo, como nós. Num repente, pareceu-me bem partilhar que gostaria de ir ter com os putos. — São limpos, sobretudo as gajas. Gostava de conhecer alguns. Chegava aos trinta gordo e feliz, com um puto no mundo.
T continuava de olhos presos em mim, e assim permaneceu mais um bom bocado, antes de responder: — Não quero que sejas infeliz. Começa a frequentar o CUMN, ou o Justiça e Paz, logo fazes novos amigos. — Duvido — e acendi outro cigarro. — Já não tenho paciência para conhecer pessoas. E eles iam achar-me montes de estranho, também não iam gostar. — Tu és o Drácula — cortou M, taxativo.
Lá em baixo, a vida cantava a vida, a "Casinha", os "Filhos da Nação" e outras merdas assim. A dada altura, uma jovem viva, fresca e talvez pura como uma rosa, propôs um brinde às pessoas que não têm vergonha na cara. Brindaram com a algazarra contida dos meninos limpinhos e continuaram, ora a falar ora a cantar, como se as pilhas não acabassem senão quando a noite os comesse.
Entretanto, nós vegetávamos no piso de cima, quase sempre calados. Para o fim, T brincava com o telemóvel enquanto M bebia como se fosse o seu último dia neste mundo. Como de costume.
— Vais pedir outro? —perguntei-lhe. — Ainda aí tens metade.
Respondeu-me que os finos eram coisas vivas, unidades vitais, por assim dizer. Emborcou o resto do que tinha por diante antes de continuar:
— É esquisito ter à frente um copo vazio. Um cadáver.
— É esquisita a impressão de estarmos a beber um reflexo de nós próprios — retorqui com um sorriso.
Fomo-nos embora por volta das quatro menos dez.
23/10/2003
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