Velharias (36)
Vinhos

Velharias (36)


Online.

"Olá pequerrucho."
"Insignificante."
"Não sejas assim. Puxo-te as orelhas."
"Enfia-me antes uma algália, eu mereço."
"Não sejas parvo. Olha, o que é um empirista?"
"Pergunta ao Google."
"Não sejas mau."


Conversas de merda na net. Não sejas isto, não sejas aquilo. Sempre me disseram para não ser. Tanto que acabei mesmo por não querer ser nada. Nada interessava — interessa — interessará. O amanhã nunca vem, e nada de quases: pura e simplesmente não chega.

Faltavam doze dias.

Quando somos tomados por um arrepio "bhlugh" logo ao primeiro gole de whisky-cola e o copo que temos à frente é de 300ml, podem passar-nos ideias loucas pela cabeça. Teria falado, se tivesse com quem. Hoje saí. Comi fora. Sentia-me bem. Tomei café no Caraíbas e comprei quinze maços de Dunhill na tabacaria pequenina que fica por baixo do centro comercial. Há anos que lá passo para comprar tabaco, só quando calha. No princípio a senhora do balcão perguntava pela família, agora já não diz nada. Voltei para casa e fechei as persianas. Não vejo o meu gato desde ontem de manhã. Não vejo ninguém. Não estás aqui para me ouvir e a única luz que tenho é a que emana deste monitor.

O meu primeiro contacto com drogas aconteceu há cerca de seis anos, também em Agosto, neste mesmo quarto. Fazia um calor infernal, mais que agora. As persianas estavam corridas até ao fundo, nem uma nesga de luz. Como hoje, e ontem, e anteontem, e há um mês atrás. Decidi que a minha primeira pedrada seria feita de whisky com Coca Cola, acompanhada de Lexotan e ao som do Dark Side of the Moon. Hoje ouço Joy Division. Não mais os Floyd. Demasiadas memórias, a dada altura tornou-se penoso. Com o passar dos anos, eu não deixei de ser eu, apenas me tornei menos melódico. A harmonia manteve-se, mas tornou-se algo seco e cinzento. Em tempos quis libertar-me do que era. Mais tarde procurei fugir ao que tinha sido. Hoje aceito tudo tal como é. Há seis anos atrás eu odiava Deus ao ponto de apregoar que ele não existia. Hoje —

Lembro-me de rebolar no chão morno, completamente pedrado, enjoado pelo travo característico que nos fica na boca quando bebemos demasiadas coisas doces. Os meus pais estavam em casa. Lembro-me de ouvir a minha mãe gritar e bater à porta. Mas eu estava demasiado feliz para me deixar perturbar. A preocupação dela parecia-me mesquinha. Não era saber que um filho podia estar a morrer que a fazia gritar. Era, isso sim, a enormidade amoral que todo o meu acto representava, e o precedente que abria. Foi como um grande "basta" que lhe gritei de olhos nos olhos, essa primeira pedrada. E passadas umas horas, saí. Tudo havia mudado. Estava consciente. Via, ouvia, falava e andava, mas senti pela primeira vez que o mundo estava todo lá fora. Pela primeira vez na vida, senti o verdadeiro esplendor da leveza. Gostei tanto que decidi que seria esse o motor da minha vida. Nunca me arrependi. Hoje é apenas uma repetição ligeiramente diferente, de ontem e de sempre. E o amanhã, será mais que simplesmente possível?

"Tudo depende da dose."

O tempo habita em nós. E com ele tudo muda. E tudo permanece. E nada há a dizer de hoje. Hoje é uma projecção de ontem. Uma repetição de sempre. Lembro-me da última vez que ouvi Joy Division aos berros, como hoje. Aconteceu há eternidades, porque alguém me tinha deixado. Hoje aconteceu porque sim, sinceramente porque sim. Porque sim não é porquê, mas hoje também não tem de ser hoje. Hoje pode bem ser ontem ou outro dia qualquer. Como sempre. Que fiz eu de diferente? Envelheci mais vinte e quatro horas? Irrelevantes. E todos os dias serão ontem, até que voltes.

Ontem, às 22h50,

Alguém me telefonou de um número que não tinha memorizado no telemóvel. Não atendi porque tinha o telefone em silêncio e estava a ver televisão noutra sala, mas, quando dei conta da chamada, não pude deixar de pensar que podias ser tu. Ou qualquer outra pessoa. Mas quem mais me havia de ligar já bem de noite, ainda por cima de um número desconhecido? Em vez de ligar de volta, enviei uma mensagem escrita, quase meia hora depois. Foi o que consegui fazer. Ninguém respondeu. Nem pensar em ligar de volta. Depositei o telefone, agora com som, em cima da cómoda do meu quarto, depois deitei-me. Mais uma vez, abandonei-me a estranhos pensamentos. O impulso para conhecer seria, de facto, análogo ao impulso para procriar?

O misterioso número de telefone que fez o final do meu dia não voltou a dar sinal de si.

13/8/2004



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