Velharias (14)
Vinhos

Velharias (14)


Tarde de luz morta. A chuva miudinha, estranha névoa, artificial, do lado de fora da janela fechada. Vários carros passam a cada dez segundos. Latir distante de cães no patamar, muito lá em baixo. Às vezes também se ouve o vento.

Nem frio nem calor. Televisor sem som — escrevo ao sabor de clarões. Perto, mesmo ao meu lado, ela dorme enroscada numa manta.

Ela que tantas vezes deseja que o dia passe num segundo: foi o que me disse. Dorme, talvez apenas dormite. Eu prefiro esperar acordado; escrevinho banalidades que procuram sentido. Também eu sonho — fujo do momento — e esta é só mais uma maneira de o fazer.

A soma de todos os momentos é a vida. Como a objectividade pode ser estranha...

O alarme de um carro na rua. Uma porta que bate no andar de cima. Deslizar macio de folhas que não chegará ao anoitecer.

Amanhã, uma dose maciça de anulação asséptica na ponta do garfo. Até me sinto doente.

Passará. Não me preocupo demasiado. Na vida, tudo é vida. Nada se perde realmente. Não mudamos, somos mudança. Cada um é o operador-mudança de si mesmo, conquanto consiga ser, entenda-se. Mais um parágrafo nascido do desalento. E o desalento foi fabricado para que pudesse nascer o pobre parágrafo, atabalhoado, ingénuo e sem graça como o imaginário de um deprimido, pejado de auto-referências.

E agora soa tão vazio.

Este tempo cheira a gases de escape, bichinhos da terra, amêndoas amargas e lírios-do-vale.

Húmus.

Há dias, deparámo-nos com um arco-íris ao sair de casa. Um arco-íris pobre, baço, citadino — que nos deleitou. Quase.

Ela fotografou-o.




Marduk morreu.
Já não devo nada ao mar.

Sentidos dormentes, sobressai este ar húmido, parado, caótico mas mudo: o ar doente que, dizem, antecede as grandes catástrofes.

A noite às seis da tarde.
Toda esta chuva, tudo.

Quando ela acordar, dir-lhe-ei que a amo. Vou querer agarrá-la e ficar assim muito tempo, aterrado, petrificado e feliz, à espera do fim do mundo que aí vem.


5 Nov. 2005



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