Dois romanos discutem um caso jurídico
Vinhos

Dois romanos discutem um caso jurídico


Tudo aquilo me pareceu estranho. O próprio Pôncio, por diversas vezes, me confessou que se sentira manipulado, embora não possuísse provas de qualquer conspiração. Um crime perfeito!
— Mas, pelo que me dizes, o criminoso foi a própria vítima!
— Sim. Mas vê os factos: o juiz não podia decidir de outro modo. Ele fez a pergunta que poderia ter ilibado o réu — e este condenou-se ao dar a resposta errada ou, pelo menos, ambígua. Não houve as formalidades habituais de um julgamento: as longas discussões, os apelos à clemência, o recurso a um júri isento.
— Como?
— Sim: vê bem. Naquele caso, o júri foi a multidão que optou por ele, libertando um outro, esse sim, criminoso confesso. Ora a multidão, como se viu depois, estava infiltrada por amigos dele — não o tinham recebido dias antes de forma triunfal? O comportamento unânime, ao condená-lo, soou-me a algo de combinado. Havia uma forte cumplicidade naquele ambiente, uma pressão para que a decisão fosse tomada com rapidez.
— Não vejo bem porquê.
— Verás! O eclipse estava anunciado para as três da tarde. O processo termina tão abruptamente como começara, com a sentença da multidão. Imediatamente arrastam o homem pelas ruas, quase o empurram, ao longo de uma distância infindável, para que ele chegue ao local do suplício antes daquela hora. A agonia é prolongada (ele estava quase moribundo quando o levaram, dada a debilidade em que se encontrava no dia do julgamento) com o recurso ao vinagre, que é um forte estimulante. Inesperadamente, perto das três, um centurião (comprado, soube-se depois) dá-lhe o golpe de misericórdia.
— Dizes-me então que a vítima se comportou ao contrário do que é habitual. Que ele dominou desde sempre a situação, marcando quer os tempos do acontecimento, quer os seus participantes? Parece que me falas de um jogo, embora estivesse em causa uma vida humana, em que as peças se moviam em função de um resultado futuro, não vejo qual.
— Começas a compreender. Hoje, tudo me parece absurdo, a começar pelo roubo do cadáver. Nem sequer com essa peça de veneração eles ficaram! Nos dias seguintes, todos os seguidores dele se eclipsaram, como por encanto. Ainda há dias ouvi falar de um, que foi visto nalgumas cidades helénicas. Mas aparentemente é como se todas as paixões daqueles dias se tivessem dissipado no instante do eclipse.
— Bom, não falemos mais disso. Há, contudo, um pormenor que me intriga: se eles sabiam a hora do eclipse, porque é que não adiaram a sentença? Teria sido possível lançar o sol na mesa como um dado susceptível de fazer virar a sorte do jogo. Ele poderia dizer: "Vede o sinal que o pai vos envia para indicar a fronte do Justo". Por que o não terá feito?
— Receio bem que o problema fique sem solução. Casos destes, dada a obscuridade das circunstâncias e a sordidez da gente, melhor é que fiquem assim, perdidos como grãos de areia no deserto dos tempos.

John C. Blood (1867-1914) nasceu e viveu em Londres (...) e passou os últimos anos da sua vida numa semi reclusão de que só saiu para tentar alistar-se no corpo expedicionário britânico que interveio na Primeira Guerra Mundial, tendo caído numa das primeiras vagas de assalto contra a infantaria alemã juntamente com um curso inteiro de Oxford, que constituía o seu batalhão. In "O Eterno Retorno e Outras Histórias", Black Sun Editores, 1994.



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